segunda-feira, 21 de novembro de 2011

EU OSTRA





Que alegria nos dá a paixão por um livro quando o encontro se dá no acaso da liberdade... Era tarde de quinta-feira, e entre tantos pequenos compromissos de dia de folga andei lentamente pela lona quente e abafada da Feira do Livro de Passo Fundo. O espaço entre tantas bancas e tantos títulos fascina, e a escolha entre os muitos livros dispostos é injusta. Mas aconteceu algo lindo: Eu fui escolhida pelo livro em vez de escolhê-lo! Um deleite, um gozo de prazer e certeza: OSTRA FELIZ NÃO FAZ PÉROLA - Rubem Alves. É este, certamente! Sempre soube, sem saber explicar, que uma leitura chata, pesada, incompreensiva, não liberta ninguém, não transporta, não eleva, jamais nos toca. Sempre gostei de ostras, sem jamais comer uma. Me emociona aquela coisinha macia, sensível, delicada, dentro daquela casinha tão rústica, fechada, resistente. Há uma identificação de minha parte, pura admiração! Gosto de me fechar em ostra diante do meu caos. Ouvir o som seleto do coração, o próprio silêncio. Ver só o que se insiste em ser visto de trás de um vidro tão espesso quanto a profundidade do fundo do mar. Eu não sei o porquê de gostar disso, tampouco se isso me faz bem ou mal. É o meu cantinho, meu esconderijo pra quando a vida dói. Lá de dentro não dá pra ver o futuro... Talvez um dia uma rede me alcance e eu seja servida em um prato requintado às pessoas na sala de jantar, em um mundo em que só ao paladar as ostras agradem. Talvez um dia as pequenas dores que a minha sensibilidade absorve deste mundo me façam produzir uma pérola, de tantas pequenas injustiças, angústias e desgostos. Talvez ostra, talvez pérola. Talvez apenas este prazer imensurável de encantar-se com a paixão que um livro pode despertar. Obrigada, Rubem Alves, por me abrir os braços e pular em meu colo como um filho amado que adotei numa tarde de quinta-feira.
Agora, na íntegra, a crônica que dá nome ao livro:

OSTRA FELIZ NÃO FAZ PÉROLA

Ostras são moluscos, animais sem esqueleto, macias, que representam as delícias dos gastrônomos. Podem ser comidas cruas, com pingos de limão, com arroz, paellas, sopas. Sem defesas – são animais mansos -, seriam uma presa fácil dos predadores. Para que isso não acontecesse, a sua sabedoria as ensinou a fazer casas, conchas duras, dentro das quais vivem. Pois havia num fundo de mar uma colônia de ostras, muitas ostras. Eram ostras felizes. Sabia-se que eram ostras felizes porque de dentro de suas conchas saía uma delicada melodia, música aquática, como se fosse um canto gregoriano, todas cantando a mesma música. Com uma exceção: de uma ostra solitária que fazia um solo solitário. Diferente da alegre música aquática, ela cantava um canto muito triste. As ostras felizes se riam dela e diziam: “Ela não sai da sua depressão…”. Não era depressão. Era dor. Pois um grão de areia havia entrado dentro da sua carne e doía, doía, doía. E ela não tinha jeito de se livrar dele, do grão de areia. Mas era possível livrar-se da dor. O seu corpo sabia que, para se livrar da dor que o grão de areia lhe provocava, em virtude de suas asperezas, arestas e pontas, bastava para envolvê-lo com uma substância lisa, brilhante e redonda. Assim, enquanto cantava seu canto triste, o seu corpo fazia o trabalho – por causa da dor que o grão de areia lhe causava. Um dia, passou por ali um pescador com o seu barco. Lançou a rede e toda a colônia de ostras, inclusive a sofredora, foi pescada. O pescador se alegrou, levou-as para casa e sua mulher fez uma deliciosa sopa de ostras. Deliciando-se com as ostras, de repente seus dentes bateram num objeto duro que estava dentro de uma ostra. Ele o tomou nos dedos e sorriu de felicidade: era uma pérola, uma linda pérola. Apenas a ostra sofredora fizera uma pérola. Ele tomou-a e deu-a de presente para a sua esposa.
Isso é verdade para as ostras. E é verdade para os seres humanos. No seu ensaio sobre O nascimento da tragédia grega a partir do espírito da música, Nietzche observou que os gregos, por oposição aos cristãos , levavam a tragédia a sério. Tragédia era tragédia. Não existia para eles, como existia para os cristãos, um céu onde a tragédia seria transformada em comédia. Ele se perguntou então das razões por que os gregos, sendo dominados por esse sentimento trágico da vida, não sucumbiram ao pessimismo. A resposta que encontrou foi a mesma da ostra que faz uma pérola: eles não se entregaram ao pessimismo porque foram capazes de transformar a tragédia em beleza. A beleza não elimina a tragédia, mas a torna suportável. A felicidade é um dom que deve ser simplesmente gozado. Ela se basta. Mas ela não cria. Não produz pérolas. São os que sofrem que produzem a beleza, para parar de sofrer. Esses são os artistas. Beethoven – como é possível que um homem completamente surdo, no fim da vida, tenha produzido uma obra que canta a alegria? Van Gogh, Cecília Meireles, Fernando Pessoa…



Ruben Alves




Roberta Santos

16/11/2011.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011